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Ligeiro delírio

Atualizado: 20 de out. de 2020

A Psicanálise defende que os “espaços vazios”, a experiência (setting analítico) e, claro, outras formas de olhar para si e para o mundo, são chaves preciosas para os sujeitos contarem a sua história. Em “Ligeiro delírio”, um conto composto de imagens sensoriais, o que se propõe é encontrar “a essência das coisas, a grandeza do vazio e a luz da cegueira”.

O conto “Ligeiro delírio” foi escrito originalmente para o EPA (Espaço para Artes) em 2011, evento da Escola Superior de Artes Célia Helena. A linguagem buscou criar imagens cinestésicas por meio de palavras, unindo o teatro, a dança e a performance.

Eu não possuo muitas recordações da minha infância, mas me lembro do inverno chegando. Era o Vento que anunciava: batia em meu rosto, bagunçava meus cabelos, não cessava. O vento iniciava seu percurso acariciando os dedos dos pés, do menor dedinho até o maior, não se esquecendo daquele espaço vazio entre um e outro. Sempre passava longamente pela sola dos pés em uma tentativa breve de (re)compensar aquela parte que tanto suportou as demais. Não é necessário uma viagem tão longa para levar alguém para baixo, mas, chegar até as profundezas é uma árdua descida rumo as incertezas ontologicamente humanas. As pedras chegam a machucar os pés, queimar a pele e a resistência é só mais um teste a se submeter. E foi assim que o céu cinza parou de me assustar e Ela me ensinou a ver as cores.

Ela vivia uma Guerra Quente no seu âmago. O seu caminho era feito de cinzas que se mesclavam com o vermelho do entardecer seco. Era evidente que não reagia bem ás cores. Bastavam apenas três tonalidades para refletir seu mundo interno. Se o preto eram todas as cores unidas em um significado obscuro para ela, o branco era ausência completa de cor. Via tudo assim mesmo, invertido e de ponta-cabeça. Como nenhuma emoção revelava-se facilmente, cinza era sua cor mais presente.

As árvores eram cumpridas, as folhas secas no chão impediam de ver onde pisava. Esse sempre foi um problema para ela, nunca sabia onde seus pés se apoiavam. Em seus devaneios, as estradas eram sempre continuações de caminhos interrompidos de outros. Por isso, confiava no vento, especialmente em suas cores. Era uma linguagem que apenas ela conhecia, era um diálogo interno, o único que verdadeiramente expressava um sentido significativo, certas certezas fantásticas ou fantasias verdadeiramente incertas.

E em meio de tamanha confusão, o encontro se deu após um grande desencontro. O inverno chegara e com ele a contração dos músculos dos ombros, pescoço, frieza na voz do “bom dia” e, não obstante, as rachaduras dos lábios. Quando achou que se perdera de si perante tamanha desordem, saiu correndo. Foi então que algo surpreendente ocorreu: o Vento passou a guiar seus passo, deu-lhe um caminho, uma direção e um sentido. Viu pela primeira vez com a alma, não mais com olhos. Para ela, a alma passou a lhe mostrar a essência das coisas, a grandeza do vazio e a luz da cegueira. Houve uma explosão interna que fez suas pálpebras pesarem. A garota fechou os olhos soltando os cabelos e enquanto se equilibrava nas pontas do pés, em uma dança só dela, para ela e com ela.

Ela se arrepiava com a mudança da direção do vento que bagunçava os seus cabelos. Enquanto algo fugia com a sua lucidez, viu-se des-coberta no íntimo esgarçando os seus contornos de pele. Nada pedia, gostava do vazio em que se encontrava, deixando o vento se encarregar das indagações.

O vento parou de tocar seus cabelos quando ela chegou até o rio. Soube de imediato que aquele não poderia ser um rio qualquer, algo profundo no seu azul profundo. Se o vento tinha cores, qual segredo aquele rio teria?

Ainda cega no silêncio, firmou os dedinhos no chão, ultrapassando a primeira margem. Inspirou uma, duas, e a terceira vez foi a sua tentativa de encarar a realidade. Quando abriu os olhos, viu a sua imagem refletida nas águas claras do grande rio. Ela sorriu, e logo se sentiu ridícula por acreditar que aqueles segundos consigo mesma foram os mais sinceros em toda sua vida.

Foi então que se deu conta: aquele olhar sobre ela mesma pesava, acusando que a leveza do ser é de fato insustentável. Assim, a tarde subitamente ficou cinza, as cores se entristeceram, a imagem amolecia seu corpo. Primeiro foram as pernas que se tornavam incapazes de sustentar o peso do corpo. Depois percebeu que tremia e suava quando uma gota escorreu da sua testa e caiu na água, distorcendo o seu Eu espelhado submerso no rio. Não estava assustada, tudo ocorreu de maneira serena e tranquila.

Queria vivenciar novamente a intensidade, o cheiro, o seu coração batendo em um ritmo des-acelerado, mas o vento parara de soprar. Como recuperar a efemeridade do presente?

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