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Hiatos de uma vida intolerável

Atualizado: 20 de out. de 2020

Se na raiz de pensamento grego, assim como de toda a tradição denominada “clássica”, o belo era o que havia de mais verdadeiro, os românticos fazem uma inversão: é a Beleza que produz maior verdade e realidade. O sujeito romântico oscila entre as fendas das antíteses: paixão e razão, beleza e melancolia, reflexão e impulso, finito e infinito, inteiro e fragmento, interpenetradas pelo azul de oceanos profundos e o negro das sombras da Morte. Conto do livro “A inquietante beleza do feio” (Patuá, 2014).

Meu bem

Posso ver sua testa franzindo enquanto segura esta carta, mas, por favor, não desista. Resista à tentação de amassá-la e, depois jogá-la bem longe, como se a distância entre você o papel fosse repelir aquilo que, de fato, lhe causa repulsa.

Faz algum tempo que o relógio parou. Não sei ao certo se são os meus olhos que não veem mais os ponteiros avançando, ou se são meus ouvidos que não mais toleram a passagem do tempo. Eu sei que estou doente, estão todos à minha volta me lembrando incessantemente desse pequeno descuido. Nesta manhã, por exemplo, dona Mariazinha apertou firmemente as minhas mãos enquanto me entregava na padaria o croissant amanteigado, descansando, por longo tempo, os seus olhos escuros nos meus.

Detesto quando as pessoas sentem piedade de mim, como bem sabe. E isso era o que mais me repugnava naquela clínica psiquiátrica. Não era a comida fria, nem tanto assim a disciplina rigorosa dos horários para levantar, escovar os dentes, tomar a primeira dose dos remédios, sentar no refeitório, lavar-me, fazer terapia em grupo, tomar a segunda dose dos remédios, suportar o tédio até… até começar tudo novamente. Não, meu querido. O pior de tudo era o sorriso áspero pungente ao final do dia: “Você vai ficar bem, não se preocupe”. Nunca entendi esse desassossego dos médicos com as vírgulas da vida: por que só aceitam períodos corridos de existência até o ponto final? Nada parece mais patético do que um amontoado de jalecos brancos sustentando suas argumentações em discursos vazios, elocuções quase anêmicas, eu diria. Eles não saberiam viver a minha vida melhor do que eu, mesmo na minha condição racional turvada.

Lembra quando nos conhecemos, no Festival Internacional de Inverno? Eu tinha vinte e um anos recém-completados. Era totalmente influenciável e sem eixo próprio. Por isso, acreditei de imediato nos seus doces elogios: “Você está deslumbrante esta noite”. Às vezes eu me pergunto: como eu não tinha percebido? Aquele festival era para você, exclusivamente seu. E você sabia muito bem disso, tanto que tentava controlar o seu exibicionismo exacerbado com traquejos disfarçados de humildade: “Imagina! Bondade sua, não foi assim tão esplêndido!”. Mas eu claramente me recordo de que você foi o único musicista solista da noite, o nome que desafiava os clássicos, esquecendo-se de que, em primeiro lugar, vem sempre a obra.

O grande musicista me encantou na buscava por uma perfeição nunca satisfeita, em conflito eterno entre a precisão da técnica e a paixão poética. Eu ainda era muito tola para perceber que essa zona turbulenta, fadada a movimentar-se em espiral, possuía um ruído inóspito. Mas eu me apaixonei imediatamente quando o vi tocar o Réquiem, inevitável! Não pude apreender, o momento escorria no tempo, sabia que acabaria no meu menor lapso. E mesmo assim, ao ouvi-lo aquela noite, você me fez acreditar que eu poderia ser evanescente como a sua música.

Parecia a primeira vez que eu escutava música erudita, cheguei ao ponto de comentar com Guido Cescatto que nunca havia conhecido ninguém tão digno de tocar Mozart em um Stradivarius. Eu sempre admirei sua capacidade extraordinária de dominar o violino com o máximo da técnica e com sutileza extrema; era impossível distinguir quando começava o instrumento e onde terminavam seus finos dedos. E eu, tão jovem e com tanta urgência de pele, só queria que o senhor também me tocasse com aqueles dedos fascinantes. A sua arte abriu portas, ecos em mim desconhecidos não mais podiam ser mais contidos. Deixei algumas vontades de prestígio, de poder e de admiração pairarem em suspensão nas minhas noites mal dormidas. Foi por isso que decidi terminar meus estudos de piano com seu amigo Guido. E eu cega por não saber e seca por querer, tive inveja. Eu fui avassaladoramente seduzida pelo seu instrumento. Eu o amei tanto que se fosse resumir minha vida, o princípio da minha existência seria você, apenas você… As lembranças envolvendo sua música, as memórias das suas conquistas na orquestra, até, finalmente, restarem somente as recordações da minha inocência pisada por uma vida absolutamente anulada.

E o preço por ser sua esposa? Nós dois sabemos: foi a renúncia a mim mesma, uma omissão letal. Das noites de insônia na véspera da sua grandiosa apresentação em Paris, até a completa solidão, minha vida apequenou-se em silenciosos sacrifícios. É por isso que me sinto tomada por uma raiva sem fim quando sorrisos falsos me fitam com olhares previsíveis. E nada dizem, calam-se por trás de falas estereotipadas. Aqui, se trata de um silêncio mortífero, como se fosse ilegítima essa minha descrença mórbida nas coisas do mundo.

Estou farta de me esforçar para buscar um sentido, vejo escorrer entre os meus dedos pedaços de mim, levemente vermelhos, amarelos e incolores. Essas são as minhas explicações para as recusas a convites para tocar em pequenos concertos, para dar aulas particulares ou até mesmo para comemorar os seus triunfos em coquetéis e festas estonteantes. Desculpe, meu amor, mas tem se tornado insuportável segurar o copo de champanhe para brindar harmonias que soam desafinadas aos meus ouvidos.

Mas não se preocupe, estou medicada, tomando regularmente aquelas pilulazinhas. Sabe, as pílulas têm-se tornado meu divertimento ao longo do dia, meu querido. Estou me acostumando a empilhá-las por ordem de cor. Eu tomos as duas vermelhas pela manhã, em seguida aquelas amarelas gelatinosas e, já quando o sol me deixa, tomo as vinte e duas gotinhas transparentes. Nessas horas, tudo vira dúvida, e eu penso que estou deixando algo escorrer a cada comprimido ingerido. É como se o conteúdo de cada pílula fosse usurpando a alma do meu corpo, até eu ficar completamente sem som, sem ritmo, sem cor nenhuma, assim: completamente vazia.

Suportei esse lugar de sombra por algum tempo mas, ultimamente, sinto aquela capacidade de admirar novas sonoridades descolando da minha pele. Resta um singelo som a cada dia, que se esfarela ainda mais nos dias nublados. Só de imaginar os olhares repugnantes dos grandes musicistas, com suas esposas perfeitas e seus filhos geniais, sinto-me exausta. E volto a estacionar na cama por mais inúmeras horas. Ultimamente me inquieto com a dúvida de realmente haver uma enorme diferença entre sonho e morte. Sinceramente, às vezes durmo sonhando não acordar, mas desperto de relance e mergulho novamente nos meus humores descrentes. Desejo apenas uma morte quente e amena, não quero minha pele rasgada por uma bala, tão pouco cortada pelo fio de aço de uma navalha.

Eu sei que o meu estado se agravou, mas meu principal incômodo provém de um constante zumbido no meu ouvido direito. É impossível tocar piano, não tanto pelo meu rebaixamento de humor, mas especialmente por esse zumbido ensurdecedor. Todos tentam, inutilmente, me incentivar a compor novamente, o piano é o meu único lugar de refúgio, o espaço sagrado das minhas verdades fugazes. Nesses tortuosos instantes, me vêm à mente as palavras do Dr. Scarpato, aquele psiquiatra roliço com voz áspera. Talvez porque essas palavras sejam as últimas coisas de que eu me lembrarei nos meus suspiros finais: “Confie em mim neste momento, eu sei viver a sua vida melhor do que você”.

São todos uns autênticos incompetentes, meu amor, definitivamente. Eu preciso apenas de você para parar de vez com tudo isso, antes que eu me perca completamente em um emaranhado de sonoridades desarmônicas. Aí, sim, deixaria de ser eu mesma, não apenas confusa ou perturbada, porque sem música fico também sem cor. E sem cor, fico completamente habitada pelo tédio. Tudo à minha volta lembra um inexorável sonho sufocado, aquilo que deveria ser, mas não é. E se hoje não mais aguento o peso de mim, logo penso que não há carga que a carne morta não suporte.

Percebo que quando me olha você também é arrastado pela minha maré de melancolia. Fico surpresa de você ainda me querer assim mesmo, com o meu inferno intenso habitando em cada cômodo, cada fresta de luz ou suspiro de vento que entra em nossa casa. As suas olheiras, seus desejos carnais insatisfeitos; agora também é à sua vida que está renunciando. Você não percebe? Sinto falta dos nosso cigarros eternos nas madrugadas inquietas, acordando entre partituras perdidas e lençóis. E isso me causa um choro lento, constante, por vezes inaudível, em todas as horas em que você se ausenta. Eu achei que fosse perfeita para você porque fazia tudo por você, para você. Mas eu me enganei. Eu me acostumei a pensar sempre no Grande Violinista e fui me perdendo, me fundindo em uma espécie de vulto dissipado. Aqui tem uma terra que afunda sob os pés e um mar azul bem profundo, com gosto de desespero salgado. É uma imagem bela, mas falta uma moldura. Avancei sem reservas, sem contornos precisos por acreditar que era o des-medo o regente das minhas entregas.

Escute e compreenda minha dor, meu amor. Vago sobre compassos suplicados, partituras opacas de lágrimas derramadas. A minha existência não é mais canção, nem melodia, somente (de)cadência. E é aí que eu despenco dilacerada em trapos em uma tonalidade intermediária embaraçada.

E quando a sonoridade se esgota dentro de nós, onde fica a eternidade?


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